Em meio às recentes polêmicas envolvendo a elevação do IOF, a devolução de descontos indevidos a aposentados e os cortes orçamentários anunciados pelo governo federal, o debate sobre responsabilidade fiscal continua a ser ao centro das atenções. Mas, por trás da retórica do equilíbrio das contas públicas, é preciso perguntar: a quem serve, de fato, essa cobrança?
A Constituição Federal de 1988 estabelece princípios a orientar a política fiscal pela estabilidade econômica, transparência e interesse público. No entanto, nas últimas décadas, o conceito de responsabilidade fiscal foi capturado por uma lógica que prioriza cortes de despesas sociais, contenção de investimentos públicos e foco quase exclusivo no pagamento da dívida, em nome da confiança do mercado.
Esse viés fiscalista se acentua diante das dificuldades reais de governar. Nenhum agente político quer ser associado a perdas: congressistas resistem a cortes nas emendas parlamentares; empresários e cidadãos rechaçam aumentos de impostos e a retirada de políticas públicas acarreta desgaste profundo, especialmente junto à base social mais vulnerável. Diante disso, governar se torna um exercício de equilíbrio entre pressões antagônicas.
Essa tensão se manifesta sempre que o governo tenta expandir investimentos sociais ou adotar medidas redistributivas. Qualquer desvio da ortodoxia fiscal é imediatamente rotulado como “populismo” ou “intervencionismo”. Exemplo disso foi a tentativa recente de aumento temporário do IOF, revertida parcialmente após forte pressão do mercado, que reagiu em nome da previsibilidade e do custo do crédito — mas cujo pano de fundo era, na verdade, a defesa da rentabilidade de ativos e da fluidez dos fluxos financeiros internacionais.
Por outro lado, quando o governo anuncia o congelamento de R$ 31,3 bilhões no orçamento, o gesto é celebrado como prova de compromisso fiscal. Mas quando busca fomentar áreas como ciência, tecnologia ou infraestrutura verde, surgem acusações de desvio de finalidade. Até mesmo a devolução de valores indevidamente descontados de aposentados e pensionistas — uma reparação de injustiça estimada em R$ 2 bilhões — foi criticada como ameaça ao equilíbrio fiscal, ignorando o princípio constitucional de justiça social.
O atual governo não está disposto a ceder ao mercado, com o recuo em políticas sociais diante da pressão financeira. Ceder seria atingir aqueles que mais dependem da ação do Estado, fragilizando sua base de apoio e abrindo caminho para crises de legitimidade.
O debate precisa ser reequilibrado. A boa gestão das finanças públicas é essencial em qualquer democracia, mas não pode ser sequestrada por interesses privados. O orçamento deve refletir os compromissos firmados com a sociedade, e não apenas os humores voláteis de investidores. O verdadeiro desafio do Estado brasileiro não é apenas “enviar sinais ao mercado”, mas garantir que esses sinais não obscureçam seu dever maior: assegurar dignidade, desenvolvimento e justiça para todos os cidadãos.