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Foto: Magnus Jonasson (https://unsplash.com/pt-br/fotografias/uma-casa-degradada-na-floresta-com-uma-cerca-em-torno-dela-Ftrs-H90uw4)

A Casa e o Tempo

Uma casa cheia de gente tem alma. As vozes se espalham pelos cômodos como fios invisíveis que sustentam o teto, as paredes e até o ar. O riso e os gritos das crianças ressoam pelos azulejos, o cheiro do café se derrama pelos corredores e convoca todos à mesa, e o piso range como se acompanhasse o compasso da vida que ali transborda. Há calor. Há movimento. Há o doce rumor da existência compartilhada.

A convivência em uma casa habitada é feita de emoções simples e indispensáveis. É ali que as pessoas encontram abrigo, descanso, alimento e o aconchego dos seus melhores instantes — o lugar onde a vida, de fato, se recolhe para existir.

Foi nessa fase que surgiram as formigas negras. Pequenas, grandes, obstinadas — pretas como luto. Varri, matei, eliminei. No dia seguinte, mais delas. Dizem que formigas anunciam despedidas, que carregam nos passos a antecipação do fim. Talvez carregassem mesmo.

Depois delas, a casa começou a se esvaziar. E tudo se transformou. O silêncio deixou de ser quietude e virou um ruído medonho. As portas passaram a bater ao menor sopro, as janelas gemeram, o chão se queixou, o reboco se desprendeu. Uma casa sem gente é um corpo abandonado: respira em suspiros frios, murmura em madeiras que estalam, guarda memórias que insistem em permanecer.

A quietude, antes doce, se transformou no tempo que não passa. É nesse cenário que se compreende como o movimento humano é o que realmente sustenta um lar. Tudo o que é vivo precisa de movimento; tudo o que é movimento impede o tempo de virar fantasma.

O tempo seguiu seu curso. O vento uivou nos cantos. A casa encolheu-se em si mesma, esperando o toque de uma mão antiga, o peso de um corpo no sofá, o tilintar de talheres que marca a rotina dos vivos. Ninguém conversava. Ninguém comia. Ninguém chegava. A casa chorava nos estalos da noite.

Até que, um dia, chegaram os parentes. Entraram com passos ligeiros, trazendo histórias novas e lembranças velhas. O ar se iluminou de vozes, o chão rangeu em contentamento, a mesa retomou seu ofício. O relógio, que parecia desajustado, voltou a marcar o tempo certo: o tempo dos vivos.

E a casa, antes ruína de silêncio, renasceu. Parou de fazer barulho sozinha. Voltou a respirar. Porque uma casa sem gente é só tijolo e saudade; mas uma casa habitada é o próprio coração do tempo batendo novamente.

Agora, ela pertence outra vez aos vivos — às pessoas que entram e saem, às conversas boas e às nem tão boas, ao cotidiano que se espalha sem pedir licença. Onde antes só havia memória, hoje há vida em pleno acontecimento. E, sob o olhar suave dos que já passaram por ali, os novos moradores ocupam seus lugares, assumem seus papéis e seguem vivendo como é preciso viver: com movimento.

Assim, as boas lembranças permanecem, as histórias engraçadas ganham nova voz, e aquela casa outrora vazia volta a se encher — agora com passos inquietos, urgências do mundo material e a bênção silenciosa de quem já se foi, mas ainda acompanha.

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